Narrativas armadas: O conflito Israel x Irã e a paz seletiva do Ocidente

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Sophia Lima Costa

6/21/20253 min read

Nos últimos dias, o conflito entre Israel e Irã voltou ao centro das atenções internacionais, não apenas pelos bombardeios e declarações explosivas, mas pelo que ele expõe sobre os mecanismos globais de poder, representação e seletividade. Em meio a mísseis, urânio enriquecido e hospitais destruídos, o que salta aos olhos é a forma como algumas narrativas se impõem, ao passo que outras são silenciadas — e como certos corpos são visibilizados como vítimas legítimas, enquanto outros seguem relegados à invisibilidade.

A disputa, embora intensificada com os ataques israelenses às instalações nucleares iranianas em junho de 2025, tem raízes profundas. Desde a Revolução Islâmica de 1979, que rompeu com a subordinação do Irã ao Ocidente, os dois países se colocam em campos opostos. Israel, ancorado no apoio incondicional dos Estados Unidos e dotado de um arsenal nuclear não declarado, projeta sua hegemonia regional por meio de superioridade militar, tecnológica e discursiva. O Irã, por sua vez, busca autonomia estratégica e energética; e, ao fazê-lo, é alvo constante de sanções, cercos e intervenções diretas ou indiretas.

A alegação central de Israel de que o programa nuclear iraniano representa uma ameaça existencial sustenta-se mais por interesses políticos do que por dados técnicos. De fato, o Irã acumulou urânio enriquecido a 60%, um avanço expressivo, mas ainda distante dos 90% necessários para a construção de uma arma nuclear. O processo para esse salto não é trivial: trata-se de uma tarefa técnica, demorada e rigorosamente monitorada por mecanismos internacionais. A própria AIEA, apesar de suas críticas recentes ao Irã, reconhece não haver indícios de que o país esteja produzindo armas nucleares.

Essa discrepância entre narrativa e evidência revela muito sobre o funcionamento da ordem internacional. A retórica de “ameaça” recai seletivamente sobre determinados países, enquanto outros — como o próprio Israel, que nunca aderiu ao Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) e possui um arsenal estimado em 90 ogivas — permanecem intocados. O duplo padrão, nesse caso, não é apenas geopolítico: ele é epistemológico e civilizacional.

A assimetria na cobertura da mídia internacional reforça essa lógica. O bombardeio ao Hospital Soroka, em Israel, recebeu ampla atenção e gerou comoção global. Já o ataque a um hospital iraniano em Kermanshah, ocorrido dias antes, passou praticamente despercebido. O contraste não se explica apenas por acesso à imprensa: ele é expressão de um processo mais amplo de desumanização do Oriente, que Edward Said descreveu como “orientalismo”; ou seja, a construção do Oriente como um Outro inferior, irracional, ameaçador e exótico, cuja dor não mobiliza empatia e cuja vida não conta.

Neste cenário, o conflito entre Israel e Irã não pode ser compreendido apenas como uma disputa militar ou uma divergência sobre armas nucleares. Ele é a continuidade de uma lógica neocolonial: enfraquecer economicamente os países que se recusam a se alinhar. Como destacou o analista Ali Ramos,

“Israel não aceita que nenhum dos seus vizinhos tenha indústria ou poderio econômico para se tornar uma potência hegemônica na região. Para ter hegemonia, Israel não depende só que o país não tenha armamento nuclear, depende também que o país esteja sempre empobrecido.”

Nesse processo, as instituições internacionais desempenham um papel ambíguo. A AIEA, por exemplo, tem oscilado entre avaliações técnicas e posturas politicamente motivadas, servindo muitas vezes como instrumento de legitimação das potências ocidentais. A diplomacia internacional, por sua vez, parece cada vez mais incapaz de escapar da colonialidade que estrutura o sistema-mundo: a separação entre quem tem direito à soberania plena e quem deve ser permanentemente vigiado, contido ou disciplinado.

A posição do Brasil nesse cenário expressa essa tensão. Embora o Itamaraty tenha condenado os ataques israelenses e, posteriormente, os bombardeios norte-americanos a instalações nucleares iranianas, sua linguagem permaneceu na moldura protocolar do “apelo à contenção” e à “preocupação com a paz regional”. A diplomacia brasileira mostrou mais ousadia em 2010, quando intentou articular, junto à Turquia, um acordo de troca de urânio com o Irã, buscando romper com a centralização das negociações nas mãos das potências tradicionais. A rejeição desse acordo pelo próprio governo Obama ilustrou não apenas a hipocrisia do discurso ocidental, mas também a resistência a qualquer mediação que emane do Sul Global.

Frente à atual conjuntura, é urgente retomar esse espírito de protagonismo alternativo. O conflito Israel-Irã não é apenas uma questão “deles”: ele diz respeito ao tipo de sistema internacional que se aceita ou se contesta. Um sistema que naturaliza a violência seletiva, que hierarquiza povos e nações, que invoca o direito internacional apenas quando convém, e que mantém a divisão do mundo entre os que podem existir com soberania e os que devem se justificar a cada passo.